Meri(dor)cracia

Meritocracia e o mito do sucesso

Uma vez vi uma frase com este sentido: Até onde o seu desejo te leva?

Ao ouvi-la sempre penso: será mesmo que o querer é suficiente para alcançar? 

Entendo que não. Vangloriamos muito nossas conquistas sobre a régua do esforço, mas ignoramos miseravelmente a imponência da aleatoriedade na atribuição de destinos honrosos. 

A meritocracia tem seus louros, porém ela é uma faca de dois gumes, pois: felicita os vencedores, e rebaixa os perdedores. Santifica os vencedores e infama os perdedores.

O ponto é: não é fácil fugir do pensamento desmoralizante de que seu fracasso é resultado de suas próprias escolhas ou virtudes, nem que de simplesmente não tem talento para merecer um destino mais prodigioso.

Na verdade, a recompensa e castigos com base em méritos não equaciona a desigualdade, tão só tenta justificá-la.

Há um excerto em Eclesiastes que muito aclara a questão:

“Retornei e observei debaixo do sol que a corrida não pertence aos mais ligeiros, nem a batalha, aos mais fortes, nem o pão é dos sábios, nem riquezas, de homens inteligentes, nem favor é para homens de habilidade; mas tempo e acaso ocorre a todos eles”

A lógica atroz que o esforço é autosuficiente para sucesso gera uma apatia com o destino de quem é menos afortunado do que nós. Ora, se meu sucesso é resultado de minhas próprias ações, o fracasso deles segue a mesma sorte. Essa lógica faz a meritocracia ser corrosiva para a comunidade. Uma noção fervorosa de responsabilidade pessoal em relação ao nosso destino torna difícil nos colocarmos no lugar de outras pessoas.

A zona de escape é estar consciente da arbitrariedade moral da posição social de uma pessoa, isso mitiga que vencedores e perdedores convençam-se que merecem sua sina.

Ainda que louvável, superar as assimetrias, no sentido que todos devam ter o mesmo ponto de partida e os mesmos resultados de sucesso, por si só, não é um contexto libertador, já que é impraticável aniquilar todas as diferenças de possibilidades.

Uma matéria no Scientific American revela que “a sorte e a oportunidade desempenham uma papel subestimado no nível final de sucesso individual.” 

Além disso, sinaliza que fatores como “um ambiente estimulante e rico em oportunidades, uma boa educação, treinamento intensivo e uma estratégia eficiente para a distribuição de fundos e recursos” são determinantes no jogo do sucesso.

Para acalmar o orgulho egóico daqueles que galgaram destinos abastado, não negamos sua valia e deferência, mas o que se tem a dizer que, no máximo, podem ser exaltados sob esta judiciosa lógica:

“tudo o que as pessoas bem-sucedidas podem dizer com honestidade é que conseguiram, por meio de uma mistura incomensurável de genialidade ou astúcia, tempo ou talento, sorte ou coragem ou determinação sombria, atender de modo efetivo à confusão de desejos e anseios, independente de serem importantes ou frívolos, que constitui a demanda de consumidor em qualquer momento. Satisfazer a demanda do consumidor não tem em si, valor; seu valor depende, caso a caso, do status moral do fim a que serve”

Em razão disso, há uma dívida moral dos mais abastados de honrar nossa obrigação de contribuir para o bem comum.

Não vencemos por conta própria nem somos autosuficientes; estar em uma sociedade que recompensa nosso talento é sorte, não é obrigação.

Num brilhante artigo da Voxx, há esta constatação desafiadora: 

“Não podemos eliminar a sorte, nem alcançar a igualdade total, mas está facilmente ao nosso alcance suavizar os efeitos mais duros da sorte, garantir que ninguém caia muito longe, que todos tenham acesso a uma vida digna. Antes que isso possa acontecer, porém, é preciso olhar a sorte na cara.

O cerne, portanto, é discernimento, a fim de entender que realizações não devem ser confundidas com valor humano. Todos são dignos de respeito independente de suas conquistas. 

Assim, devemos buscar a igualdade dos resultados reais, sem caprichos, a fim de que ninguém seja pobre demais para viver nem rico o bastante para subjugar. Trabalhemos pela igualdade…

obs: crédito ao livro “a tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? – de Michael J. Sandel”: alguns trechos foram transcritos em literal.

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